Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.
Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.
Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.
Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.
Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contUdo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.
Não afirmo sem prova.
Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!
Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?
ASSIS, M. In: SANTOS, J .F. As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007
Agora, responda às questões abaixo em seu caderno:
1. Apesar da linguagem mais rebuscada, característica de sua época, Machado de Assis procura dar um tom coloquial à sua crônica. Como ele se refere ao leitor, para atrai-lo e seduzi-lo?
2. Trivial é a propriedade daquilo que é comum, corriqueiro, banal. Machado de Assis diz que a maneira correta de começar uma crônica é por uma trivialidade: falar do calor, por exemplo. Na sua opinião, por que o calor seria um assunto comum entre todas as pessoas?
3. Ao longo da crônica, várias expressões cotidianas são utilizadas para se referir ao calor.
a) Cite algumas delas.
b) Diga agora algumas expressões atuais que você conheça, mesmo que sejam gírias, que tenham a mesma finalidade.
4. Segundo o autor, o calor é sempre um pretexto, um "quebra-gelo", a partir do qual as pessoas passam a falar de outros assuntos: Sol, Lua, febre amarela. Depois de comentar sobre o calor, para quais outros assuntos a conversa entre as vizinhas se dirige?
5. O autor faz passeios por diversas épocas, procurando a origem da crônica. Em todas elas o calor é o assunto principal. Existem três cenas com personagens diferentes na crônica. Quais são essas três cenas?
6. Primeira cena: Adão e Eva no paraíso.
a) O que prova o fato de Adão e Eva andarem nus?
b) Que fato teria criado, entre outras mazelas, o calor?
7. Segunda cena: as primeiras duas vizinhas conversando.
a) Em que tempo ocorre esta cena?
b) Segundo o cronista, o calor gerou um bate-papo entre as vizinhas. E esse bate-papo, o que gerou?
c) Depois de fazer comentários sobre ervas, as plantações do vizinho e suas tropelias amorosas, por onde mais poderia encaminhar-se a conversa das vizinhas?
d) Por que, segundo o autor, todos esses assuntos seriam material para crônicas?
8. Terceira cena: o autor vai ao cemitério.
a) O cronista passa, então, a contar uma história ocorrida com ele mesmo. Essa história pode ser considerada incomum ou ela é trivial?
b) Essa história tem um fundo moral, mas a moral não se encontra no final. Qual é a moral dessa última parte da crônica? Retire do texto uma frase que a sintetiza.
c) Quem eram os "pobres-diabos" e o que eles faziam?
d) Como a vestimenta diferenciava os homens que foram com ele ao enterro dos homens com as enxadas?
9. Ás vezes, em um ambiente em que as pessoas não se conhecem, um comentário sobre a temperatura - "Que calor, não?" - serve para "quebrar o gelo" e começar um papo com desconhecidos.
a) Discuta com um colega: que assuntos o comentário sobre o calor, hoje em dia, poderia gerar?
b) Anote em um papel alguns temas triviais que a referência às condições climáticas poderiam gerar.
Fonte: Português - A arte da palavra (Editora AJS)
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